LEI DA MENTE LIVRE
EM DEFESA DAS NOSSAS CRIANÇAS, JÁ VÍTIMAS
DE UM CONSUMISMO DESENFREADO
A Lei proíbe "o direcionamento à criança de anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchandisings, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda".
JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O Estado de
S.Paulo
Na semana passada, o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente aprovou resolução que proíbe publicidade voltada para
menores de idade no Brasil. O texto está na Secretaria de Direitos Humanos e
deve ser publicado nos próximos dias no Diário Oficial.
Já há tempos a sociedade brasileira reclama uma regulação da
propaganda invasiva que alcança crianças até mesmo dentro de casa, através da
televisão, do rádio, da internet e de outros meios de comunicação.
Também nas escolas e em outros recintos por elas
frequentados está a propaganda de tocaia à espera dos imaturos para se apossar
de sua atenção. Nos últimos 50 anos, os brasileiros ficaram extensamente expostos
a todos os recursos invasivos criados e difundidos pelo impressionante volume
de instrumentos e meios de difusão de informações. Instrumentos de uma
verdadeira poluição das consciências.
A geração dos avós ainda é aquela que mal teve acesso ao
rádio como utilíssimo instrumento de multiplicação das possibilidades de
informação e conhecimento. Ainda se lembra das conversas domésticas, dos
bate-papos da esquina, da porta de casa. Com o rádio, porém, muita informação
inócua fluiu pelo éter, como então se dizia, mas muita coisa boa também,
arrastando consigo para dentro da cabeça do ouvinte a propaganda do
patrocinador. Lembro com saudade da Mensagem Musical da Itália, programa
transmitido pela Rádio Gazeta.
Na lixeira da memória restou um elenco de informações
inúteis lá implantadas como parasitas: "Melhoral, Melhoral, é melhor e não
faz mal!", que diz tudo e não diz nada. Ou, "Pílulas de vida do dr.
Ross, fazem bem ao fígado de todos nós!". E mesmo "Tosse, bronquite,
rouquidão - Xarope São João!". Parece que todo mundo vivia doente.
Eu fazia um esforço brutal para decorar a tabuada e evitar
as reguadas da professora quando me atrapalhava para responder quanto é quatro
vezes quatro. Sobretudo porque achava a palavra dezesseis muito mais difícil do
que uma quadrinha que, mal acabara de ser alfabetizado, decorei em meus
primeiros chacoalhados passeios de bonde: "Veja, ilustre passageiro, o
belo tipo faceiro que o senhor tem a seu lado. Mas, no entanto, acredite: quase
morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado!".
A rima e a métrica, roubadas da verdadeira poesia, tornavam
irremediável a fixação dos versos, principalmente por crianças como eu. O Rhum
Creosotado ocupando o lugar do dezesseis e das monótonas recitações da tabuada,
roubando minha inteligência da preciosa e útil matemática em nome de versinhos
inúteis de um remédio que nunca tomei nem tomaria. No entanto, estou eu aqui a
repeti-los quase 70 anos depois.
Com a televisão chuviscosa e em preto e branco, no meio de
um lixo publicitário imenso, sobreviveu a bela música dos Cobertores Parahyba:
"Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar. Um bom sono pra você e um
alegre despertar.".
Já ouvi mães de agora cantando a musiquinha como canção de
ninar para seus filhos, de quando também elas crianças fixaram a música e os versos.
Lá se foram o Boi da Cara Preta, o Nana Neném e outras mais.
Nos últimos anos, as coisas deixaram de acontecer
aleatoriamente. As famílias se tornaram reféns da TV, o aparelho até certo
momento volumoso ocupando o lugar do antigo e medonho elefante vermelho de
louça, que afastava o mau-olhado, ou mesmo o santo da devoção doméstica,
deslocado para um canto discreto da casa. As crianças se tornaram os alvos e as
vítimas prediletas da guerra comercial, passaram a ser utilizadas como
quinta-colunas e cúmplices da propaganda para influenciar os pais na sua nova
cidadania da sociedade de consumo, do consumidor impotente e cativo, do cidadão
de coisa alguma e de lugar nenhum.
Por unanimidade, o Conanda - Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente, constituído por entidades da sociedade civil e por
ministérios do governo federal, acaba de aprovar uma resolução que terá força
de lei. Proíbe "o direcionamento à criança de anúncios impressos,
comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções,
merchandisings, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda".
O documento proíbe, ainda, "a veiculação de propaganda
no interior de creches e escolas de educação infantil e fundamental, inclusive
nos materiais didáticos e uniformes escolares". É uma verdadeira lei áurea
da mente infantil para que fique disponível ao que interessa. E que também veta
os efeitos distorcidamente formadores da personalidade dos imaturos com a
intromissão de um imaginário mercantil e coisificador, na coisificação muito
semelhante ao do cativeiro, que transformava gente em coisa.
A resolução será ineficaz se não contar com a vigilância e a
ação supletiva da família e dos educadores, como coadjuvantes de uma ação
coletiva no sentido de restituir o direito de educar a quem deve e pode
fazê-lo.
Sempre haverá quem não pretenda abrir mão dos lucros indevidos
propiciados pela colonização da atenção e da mente das crianças.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO. , PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE
, FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, , DE A SOCIOLOGIA COMO
AVENTURA (CONTEXTO)
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