Reflexões sobre O Tempo e o Cão
– A Atualidade das Depressões
de Maria Rita Kehl
de Maria Rita Kehl
Os dados são estarrecedores:
“A Organização Mundial de Saúde
(OMS) divulgou que os ‘transtornos depressivos’ se tornaram a quarta causa
mundial de morbidade e incapacitação, e atingem cerca de 121 milhões de pessoas
no planeta – sem contar, evidentemente, as que nunca se fizeram diagnosticar.
Até 2020, segundo a OMS, a depressão terá se tornado a segunda principal causa
de morbidade no mundo industrializado, atrás apenas das doenças
cardiovasculares.” (KEHL, 2009, pg. 51)
Só no
Brasil, são 17 milhões de pessoas reconhecidas como depressivas; e a
comercialização de Prozac no país vem crescendo numa taxa de 22% ao ano,
movimentando anualmente 320 milhões de dólares.
Yves de
la Taille, por sua vez, analisa outra estatística alarmante da mesma pesquisa
da OMS, de 2000, que indicou que
“o que mais mata no mundo, hoje, é
o suicídio. Foram 815 mil suicídios naquele ano, contra 520 mil mortes
ocasionadas por crimes e 310 mil em guerras. Ou seja, seria preciso somar as
mortes decorrentes de crimes e guerras para empatar com o número de suicídios.
Naturalmente, isso depende da região. Em alguns países, é a guerra que ocasiona
mais mortes – como no Iraque. Em outros, como o Brasil, são os crimes.
Portanto, o mal-estar moral e ético, que pode levar a pessoa ao suicídio,
manifesta-se de maneira mais forte no hemisfério norte, justamente aquele cuja
cultura costuma ser considerada como a mais avançada e a mais desejável do
mundo ocidental.” (DE LA TAILLE, 2009, pg. 9)
Curioso
e sintomático que este “aumento assombroso dos diagnósticos de depressão”,
desde a década de 70, se dê paralelamente à expansão dos tentáculos do império
do consumo e do espetáculo, que exigem de todos nós que gozemos sem
entraves (com a condição, é claro, de que gastemos no processo muito
dinheiro!). A depressão ganha dimensões de epidemia enquanto a sociedade de
consumo consegue cooptar e fazer de slogan seu até mesmo um mote de Maio de 68!
A
constatação desta epidemia mundial de depressão, além do aumento significativo
de pacientes que se declaram deprimidos e que procuram a clínica psicanalítica,
levou Maria Rita Kehl a debruçar-se sobre o tema em seu livro O Tempo
e o Cão (ed. Boitempo). Nele, a depressão é descrita como um “sintoma
social”, como a expressão generalizada de um “mal-estar na civilização” muito
difundido.
“Analisar as depressões como uma das
expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos
constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão incômodo e
ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão de
mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem adaptados ao século da
velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e do consumo
generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e
silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida
social desta 1a década do século 21. Por isso, os depressivos, além de se
sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do
desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o spleen, o luto e outras
formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o
risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia
da qual ninguém quer saber. ‘Entre nós, hoje em dia, o blues não é
compartilhável’, escreve Soler. ‘Uma civilização que valoriza a competitividade
e a conquista, mesmo se em última análise esta se limite à conquista do
mercado, uma tal civilização não pode amar seus deprimidos, mesmo que ela os
produza cada vez mais, a título de doença do discurso capitalista’.” (22)
Os
deprimidos, que apesar de seu imenso número são verdadeiros “proscritos”
sociais, cujos discursos ninguém parece a fim de ouvir, são descritos por Maria
Rita Kehl como pessoas que estão “desajustadas” em relação ao sistema econômico
e cultural imperante, e que por isso são tão incômodos: não suportam o sistema
ao qual os outros estão tentando se ajustar e aceitar.
“Não há, entre os discursos
hegemônicos da vida contemporânea, nenhuma referência valorativa dos estados de
tristeza e da dor de viver, assim como do possível saber a que eles podem
conduzir. O mundo contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o
sofrimento dos depressivos com sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos
ideais em circulação”.
(MARIA RITA KEHL, 16).