VÍTIMAS DE PEDOFILIA NA IGREJA
CATÓLICA CONTAM SUAS HISTÓRIAS AO CORREIO
O Correio conversou com cinco pessoas que sofreram violência sexual de
padres ou professores de instituições católicas. Um deles, que esteve com
Francisco na semana passada, diz que papa lhe pediu perdão.
Não foi o suficiente para exorcizar décadas de trauma, dor, pesadelos e
consequências devastadoras para a vida afetiva e social. Mas a imagem do
cardeal australiano George Pell, tesoureiro licenciado do Vaticano, cercado de
policiais ao deixar o tribunal, na semana passada, foi um pequeno alento para
as vítimas de pedofilia dentro da Igreja Católica.
O ex-arcebispo de Melbourne e de Sydney, na Austrália, será o mais alto
prelado submetido a julgamento por acobertar casos de abuso sexual, mais um
episódio de um escândalo com sucessivos capítulos e que deixou milhares de
vítimas ao redor do mundo. São homenns e mulheres que, há décadas, esperam por
justiça e ainda lutam para superar o trauma que sofreram.
O Correio ouviu algumas dessas vítimas de abusos sexuais cometidos por
sacerdotes e professores de instituições católicas pedófilos. Leia:
Depoimentos
"Ele disse que tinha sido enviado por Deus para salvar a minha alma,
pois eu era uma criança má".
Barbara Dorris, 70 anos, mora em Saint Louis, no Missouri (Estados Unidos)
"O tio da minha melhor amiga era um padre em nossa paróquia. George
Lodes começou a me estuprar quando eu tinha seis anos. Também violentou a
sobrinha. Ele disse que tinha sido enviado por Deus para salvar a minha alma,
pois eu era uma criança má. Eu pensava que ele soubesse que eu desobedecia
minha mãe e que o estupro era minha punição. Eu tinha apenas seis anos. Os
abusos prosseguiram até os meus 12 ou 13 anos. À medida que ficávamos mais
velhas, ele começou a nos ‘dar’ para outros padres. Quando eu contei a minha
história ao bispo, ele não negou que tivesse ocorrido. Disse apenas que o padre
Lodes era um bêbado e que eu devia ter me desenvolvido sexualmente muito
precocemente. Eu reprimi completamente a memória e segui com a minha vida.
Nunca namorei, nunca quis me relacionar. Não compreendi, durante décadas, que
as pessoas sentiam emoções. Fui casada por 48 anos e criamos seis filhos
juntos. Pergunto-me como eu teria sido se não houvesse o abuso. Presenciei meus
filhos fazendo escolhas sobre as suas vidas e percebo que nunca senti que tive
opção. Tive de obedecer, pois era má."
"O homem me estuprou, me
engravidou e me passou HPV"
Joelle Casteix, 47 anos, mora em Orange County (Califórnia)
(foto: AFP)
"Fui sexualmente atacada por dois anos, quando eu era estudante de
uma escola católica de segundo grau na Califórnia. Eu tinha entre 15 e 17 anos
e o homem que abusou de mim era meu professor do coral. Apesar de não ser um
padre, ele estava protegido pelo sistema que salvaguarda os sacerdotes. O homem
me estuprou, me engravidou e me passou HPV, que deu origem a verrugas venéreas.
A escola e a Igreja sabiam do abuso o tempo todo e disseram que foi minha
culpa. Quando fiz a denúncia, a Diocese de Orange afirmou não ter evidências do
abuso. Não acreditaram em mim. Processei a diocese e, na ação, ficou claro que
a escola e a Igreja tinham conhecimento de que o professor estava me
estuprando. Foram mais de 200 páginas de evidências. Perdi a confiança nas
pessoas. Minha família, meus amigos e minha igreja me culparam. Tornei-me
suicida e envolvida em auto-ódio e destruição. Tive relacionamentos ruins,
pensei que não tivesse valor. As pessoas diziam que eu era uma p... e eu
acreditava. Ao ficar grávida de meu filho, anos depois, em vez de me sentir
feliz, me arruinei com vergonha e culpa.”
"Depois dos passeios, sempre
ocorriam os abusos. Eu não contei para ninguém"
Tim Lennon, 71 anos, presidente da Rede de Sobreviventes de Abusos Praticados por Padres (Snap), morador de Tucson (Arizona)
(foto: Arquivo pessoal)
“Durante meses fui molestado sexualmente e violentamente estuprado pelo
padre Peter Murphy, quando eu tinha 12 anos. Ele visitava minha casa, a convite
de meus pais, e me levava para jogos de baseball, parques ou filmes. Depois dos
passeios, sempre ocorriam os abusos. Eu não contei para ninguém. Descobri, mais
tarde, que outras crianças foram vítimas desse estuprador cruel e torpe. O
bispo sabia que ele abusava de crianças antes de ser designado para minha
escola e minha paróquia. A cada vez que ele era flagrado machucando uma
criança, o bispo o movia de paróquia. O abuso sexual infantil causa danos a
longo prazo. Eu experimentei depressão, medo, ansiedade, raiva, isolamento
social, pesadelos e transtorno de estresse pós-traumático. Tive a sorte de
contar com o apoio de familiares e de amigos, de um terapeuta especializado em
trauma. Joguei fora o fardo de culpa, vergonha e humilhação, o qual muitas
vítimas carregam. Minha cura é uma jornada, na qual o abuso faz parte de minha
vida, de quem eu sou. As vítimas precisam saber que não estão sozinhas.”
Jay D. Koenig, 59 anos, mora em Phoenix, no Arizona
"Quando tentei denunciar o
crime, me disseram que eu era um pequeno garoto sujo"
(foto: Arquivo pessoal)
"Em 1966, eu ajudava meu avô na escola St. Marys of Good Councel, em
Adrian, no Michigan. Eu tinha sete anos. Enquanto usava o mictório no banheiro,
um padre me agarrou pelas costas, esmagou meu rosto contra a porcelana e,
então, me sodomizou por uma hora ou mais. Quebrei dois dentes frontais e fiquei
com marcas pelo meu corpo. Quando tentei denunciar o crime, me disseram que eu
era um pequeno garoto sujo, que tinha abandonado a Igreja e que um padre jamais
faria tal coisa. A denúncia foi rapidamente enterrada e me disseram que eu não
era bem-vindo em nenhum templo da Diocese de Lansing, no Michigan. Tive
pesadelos recorrentes durante anos após o incidente. Fui demitido de meu
emprego, depois de 21 anos, em 3 de agosto de 2017. Sofri terror noturno,
acordava suando frio e muitas vezes caía da cama. Sou incapaz de usar mictórios
públicos. Minha esposa, como quem estou casado há 28 anos, teme que eu a
machuque durante a noite ou que eu cause danos a mim mesmo. Também desenvolvi
um medo por multidões, que me fazem imaginar que tudo pode ocorrer novamente.”
"O papa pediu perdão"
(foto: AFP)
Na semana passada, o
papa Francisco hospedou e se reuniu, na Santa Sé, com três vítimas chilenas do
padre Fernando Karadima, hoje com 87 anos. Uma das pessoas recebidas pelo
pontífice, José Andrés Murillo, 43 anos, prefere não detalhar os abusos que
sofreu, mas descreve o encontro como "algo muito significativo".
"Tive a oportunidade de
conversar com o líder da Igreja sobre a crise mais importante pela qual ela
atravessa: o abuso e o acobertamento. É uma crise, pois, além de destruir vidas
que confiaram na Igreja, assassinou a fé de milhões de pessoas”, lamentou
Murillo, hoje diretor da Fundación para la Confianza, organização não
governamental voltada a menores vítimas de pedofilia, em Santiago do
Chile.
“O papa pediu perdão de modo formal e, acredito, honesto. São milhares de
vítimas, todas merecem perdão, mas, também, justiça. Eu agradeço pelo gesto do
papa e espero ações concretas”, completou.
Murillo defende que os casos de pedofilia não sejam considerados erros,
nem pecados, mas crimes e corrupção. “Eles são a manifestação de um poder
perverso. O mais grave não é o abuso, mas o seu acobertamento. Sem isso,
praticamente não haveria violações”, observa. Para o ativista chileno,
Francisco tem um “enorme desafio” pela frente.
“Além de castigar os padres abusadores e os bispos encobridores, deve
fazer justiça com as vítimas, buscar sua reparação material e psicológica.
Também precisará lutar para limpar a Igreja, melhorar a formação e atuar na
prevenção efetiva. Não será tarefa fácil, mas é imprescindível”, reconhece. Ele
classificou de “boa notícia” o julgamento do cardeal Pell, na Austrália. “É um
caso muito importante, pelo cargo que ocupa. Espero que haja justiça.”
Especialista vê poucas mudanças
significativas
Autor de Priests, sex and secret codes (“Padres, sexo e
códigos secretos”) e especialista em direito canônico, Patrick J. Wall sugere
que autoridades, promotores e investigadores de crimes sexuais possam se valer
do fato de que um precedente foi criado, no momento em que o mais alto prelado
da Santa Sé vai a julgamento em uma corte civil pela primeira vez em 2 mil
anos.
“Nenhum padre, religioso, bispo, cardeal ou pontífice está acima da lei.”
De acordo com o estudioso, o papa “tenta colocar novo vinho em cantis velhos”.
“Nada feito até agora mudará a cultura da hierarquia da Igreja. Criar comissões
na Cúria Romana ou atualizar leis não modifica o padrão e a prática dos bispos
de não impedirem os padres de sodomizarem crianças”, diz Wall.
CB-DF