AMAZÔNIA, A NOVA FRONTEIRA DO TRÁFICO E SUA VIOLÊNCIA, COM AS FACÇÕES EM
GUERRA: A AMAZÔNIA É O NOVO RIO
Assassinato em Porto Velho - Em
vários pontos da fronteira os homicídios já superam
os do Rio de Janeiro (Antonio Milena/.)
Moradores com pavor de sair às ruas
à noite. Bares e restaurantes que fecham as portas cada vez mais cedo.
Territórios dominados pelo crime organizado. Isso lembra um certo estado sob
intervenção federal? Infelizmente, esse cenário desolador está longe de ser uma
exclusividade do Rio de Janeiro. O Amazonas é hoje o exemplo mais
bem-acabado do processo de carioquização por que passam estados brasileiros que
entraram na rota do tráfico internacional de drogas — além do Amazonas, Acre,
Rondônia e Ceará.
Em Manaus, o conjunto habitacional
Viver Melhor é a síntese de como a tragédia do Rio se replica no país. Erguido
há seis anos por meio do programa Minha Casa Minha Vida, o residencial
praticamente já se funde com uma favela que brotou ao lado. Somados os números
de moradores dos apartamentos e dos barracos quase contíguos, são 70 000 as
almas que habitam o local, a maioria egressa de áreas de risco ou de invasões
nas bordas de rios e igarapés da região. Da mesma forma que o bairro Cidade de
Deus — que nasceu no Rio como alternativa de reassentamento para famílias
retiradas dos morros cariocas —, o residencial do Amazonas converteu-se em um
terreno fértil para o tráfico. A facção criminosa Família do Norte (FDN)
assumiu o controle do local. Trata-se, literalmente, de crime organizado: cada
um dos blocos com quatro prédios de quatro andares está hoje entregue ao
comando de um gerente do tráfico.
Descoberta - No lado peruano da
fronteira, lavoura com potencial de produzir 270 toneladas de cocaína
(Polícia do Peru/)
Já no Acre e em Rondônia, que fazem
fronteira com a Bolívia, é o Primeiro Comando da Capital (PCC) que dá as
cartas. Vendedor exclusivo da droga boliviana no Brasil, o PCC controla a faixa
de fronteira que se estende para o sul, até o Paraguai. Em Porto Velho, a
organização conquistou o mais emblemático dos conjuntos habitacionais da
cidade. O Orgulho do Madeira, como é chamado o residencial erguido com
financiamento do governo federal, reúne 7 000 moradores e é um antigo conhecido
do sistema de execução penal de Rondônia. Nas telas de monitoramento de presos
com tornozeleira eletrônica, o Orgulho do Madeira aparece como uma mancha em
destaque. “Ali moram quase todos os bandidos rastreados pelo aparelho”, conta o
secretário de segurança, Lioberto Caetano de Souza. Aos moradores que não têm
conexão com o crime restam apenas duas opções: submeter-se às regras da facção
ou abandonar seu apartamento, que depois será ocupado pelos criminosos. Além da
Amazônia, a tomada do controle de residenciais destinados à população de baixa
renda já foi identificada em Cuiabá, Fortaleza e Rio de Janeiro.
O Ceará entrou na rota dos
criminosos por ser o lugar a partir do qual a droga segue para a Europa. No mês
passado, o medo se instalou em diversas cidades, incluindo a capital,
Fortaleza. Setenta veículos foram incendiados e uma série de prédios públicos,
atingidos por coquetéis molotov. Era um recado de bandidos presos às
autoridades locais: não aceitariam a instalação de bloqueadores de celular nos
presídios. Na disputa, que já se arrasta por dois anos, o crime tem levado
vantagem. Em 2016, o PCC chegou a estacionar um carro-bomba em frente à
Assembleia Legislativa do Ceará para intimidar os deputados que votariam uma
lei para regulamentar o bloqueio. As autoridades cearenses não assumem, mas até
as conchas da Praia de Iracema sabem que os bandidos conseguiram o que queriam.
Prova disso é que os bloqueadores jamais foram instalados onde deveriam. Com o
Ceará transformado em palco de uma guerra de facções que disputam o controle do
tráfico na região — estão na briga PCC, Comando Vermelho, Guardiões do Estado e
FDN —, Fortaleza tornou-se a capital mais violenta do Brasil.
A Organização das Nações Unidas
reconhece o Brasil como o segundo maior mercado mundial de cocaína, atrás
apenas dos Estados Unidos. No que se refere ao crack, droga ainda mais brutal e
agressiva, nosso país é líder. As projeções de consumo mostram que o negócio
gera um faturamento estimado de 34 bilhões de reais. Se fosse uma única
empresa, o tráfico de drogas estaria entre as dez maiores companhias
brasileiras. Para competirem nesse mercado bilionário, os criminosos lançam mão
de armas variadas — e o medo é uma delas. Ele ajuda a explicar, por exemplo, o
que ocorreu no Estado do Amazonas em 2 de janeiro de 2017. Naquele dia, as
páginas do noticiário foram tomadas por manchetes sobre a execução de 56 homens
no interior do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. Os criminosos da
FDN fizeram questão de filmar e difundir, por meio do WhatsApp, as cenas da
selvageria, que tiveram como vítimas preferenciais os integrantes do rival PCC.
Um delegado que esteve no interior da prisão descreveu o que encontrou: piso
tingido de sangue, cabeças decepadas pelo chão, vísceras expostas e até um
coração, que fora arrancado de uma das vítimas, jogado em um dos corredores.
Qual seria o motivo da crueldade? Na guerra pelo controle do tráfico de cocaína
na Amazônia, a tática de expor publicamente “troféus humanos” virou uma prática
tão comum quanto mostrar os dentes para o adversário.
A violência transborda para muito
além das facções. Em 2016, foram registrados mais de 61 000 assassinatos
no Brasil. VEJA ouviu secretários de Segurança, delegados especializados em
investigar homicídios e policiais de uma dezena de estados. Todos afirmaram que
o tráfico de drogas é o principal impulsionador dos homicídios no Brasil. São
homens e mulheres abatidos em lutas de quadrilhas, em crimes de acerto de
contas ou vítimas colaterais das organizações movidas a cocaína. Em Rondônia,
estado que tem um dos melhores índices de elucidação de homicídios do país, a
estimativa dos agentes de segurança é que, naquela porção da Floresta
Amazônica, 90% das mortes tenham vínculo com o tráfico. “O crime
mudou. O padrão que marcou a ocupação da fronteira, que era de mortes por
rixas, pistolagem, questão fundiária e brigas em garimpo, deu lugar aos crimes
do tráfico”, afirma o delegado de homicídios Carlos Eduardo Ferreira, que há
mais de três décadas atua na região.
Uma descoberta recente ajuda a
mapear a dimensão do problema. Em 2017, os satélites do Sistema de Proteção da
Amazônia (Sipam) detectaram no lado peruano da fronteira uma área desmatada de
9 000 hectares. Seria algo irrelevante no contexto da devastação medida
anualmente na Floresta Amazônica. Ao processarem essas imagens, porém, os
técnicos brasileiros chegaram a um diagnóstico assustador. Na amostra,
detectaram-se lavouras de coca com o potencial de produzir 270 toneladas
de cocaína por ano. Pela localização, é certo que essa produção em escala
monumental escoa apenas por um caminho possível: os rios amazônicos. Escondida
em navios de carga e de passageiros, a droga vai parar nas mãos das
organizações criminosas que hoje aterrorizam o país e transformam áreas até há
pouco pacíficas em caldeirões de sangue.
“O Estado levou um monte de pessoas
para áreas remotas e as deixou nas mãos de bandidos”, diz o delegado Guilherme
Torres, diretor do Departamento de Repressão ao Crime Organizado da Polícia
Civil do Amazonas. A nascente do problema que deságua no Brasil em forma
de morte e tragédia está do lado de lá das fronteiras nacionais, e, enquanto
ela não secar, qualquer tentativa de combater o crime organizado e seus efeitos
deletérios será inútil. Enquanto a polícia tenta enxugar o gelo, uma parte cada
vez maior do Brasil arde nas chamas da violência.
DAS FARC, COM CARINHO
Agora no Brasil – Fuzis
colombianos: “Novo padrão de violência”
Em 2016, o mundo celebrou o fim de
uma das mais longas guerrilhas de nosso tempo. As Forças Armadas Colombianas
(Farc) depuseram as armas, e seus mais de 7 000 combatentes entregaram parte de
seu arsenal. Em janeiro de 2018, VEJA revelou, com base em documentos
exclusivos, que alguns ludibriaram o acordo. As Farc conseguiram anistia e
entraram para a legalidade ao mesmo tempo que alguns de seus ex-integrantes
mantiveram o controle sobre o tráfico de drogas. Cerca de 1 000 ex-membros
seguem cuidando do negócio da organização, a produção de drogas.
O ex-delegado federal Mauro
Sposito, uma das maiores autoridades brasileiras em assuntos de segurança nas
fronteiras, afirma que os “órfãos das Farc” já estão entre nós. Mais: ele diz
que bastou a organização selar o acordo de paz para começarem a aparecer por
aqui os primeiros fuzis nas mãos de traficantes. No fim de 2016, um delegado da
Polícia Civil foi morto em uma operação. Os criminosos (por sinal, colombianos)
traziam um fuzil AKM, uma atualização do AK47, reconhecido por especialistas
como uma arma-padrão das Farc. Também foram recuperados fuzis FAL idênticos
àqueles tirados de uso pelo Exército venezuelano. Como as marcações foram
riscadas, é difícil saber com exatidão a origem do arsenal. Mas a Polícia
Federal suspeita que as armas tenham sido contrabandeadas pelo regime chavista
para os então guerrilheiros, que agora as vendem no Brasil ou prestam serviços
como “freelancers” para as quadrilhas locais.
Em Rondônia, ao sul do Amazonas, só
em 2017 apareceram os primeiros fuzis nas mãos dos bandidos. Segundo o
delegado-geral da Polícia Civil, Eliseu Muller de Siqueira, a chegada dos fuzis
acendeu uma luz vermelha: “Teremos de nos preparar para um novo padrão de
violência que está por vir”.
Postado por Tomaz
Filho às 12:03