Numa tarde abafada de verão, Alan Parker se trancou em sua sala de montagem. 
Lá dentro, o diretor revisava obsessivamente uma cena: um jovem prisioneiro em câmera lenta, olhos inflamados de fúria, mordia a língua do guarda até arrancá-la. 
Repetidas vezes, Brad Davis cuspia a língua de porco usada como prótese. 
Era um momento brutal, exagerado — e Parker sabia disso. Mais tarde, admitiria que se excedeu. 
Mas naquele instante, ele só pensava no impacto. Pensava em traduzir, com a linguagem do cinema, a dor de estar encurralado numa fortaleza inexpugnável. 

O Expresso da Meia-Noite (1978), estrelado por Brad Davis, John Hurt, Paul L. Smith e Randy Quaid, não era apenas um filme sobre prisões. Era uma descarga emocional — escrita por Oliver Stone, dirigida por Parker e embalada pela trilha pulsante de Giorgio Moroder. Baseado numa história real, o filme retrata a prisão do americano Billy Hayes na Turquia por tráfico de haxixe e os anos que passou tentando sobreviver ao sistema carcerário do país. Ganhou dois Oscars, foi aclamado pela crítica e se tornou cult. 
Mas também gerou um terremoto internacional. 
Durante anos, turcos protestaram contra o que consideraram um retrato desonesto, ofensivo, quase xenofóbico. 
O filme foi acusado de destruir sozinho a imagem da Turquia no Ocidente.

E talvez não tenham sido apenas acusações vazias. No filme, guardas turcos são sádicos, crianças são mostradas como grotescas e o sistema judicial parece uma roleta russa moralmente falida. 
Oliver Stone, anos depois, lamentaria o tom do roteiro. Alan Parker, embora defendesse seu trabalho, reconhecia que o filme havia gerado consequências que ninguém da equipe previra. Sally Sussman, diretora do documentário Midnight Return, entrevistou todos os envolvidos e chegou a uma conclusão simples, porém dolorosa: 
O Expresso da Meia-Noite foi feito “sem malícia”, mas com descuido. “Foi uma consequência não intencional”, afirmou.

A escolha de Brad Davis para o papel de Hayes foi uma das decisões mais conscientes da equipe — e também uma das mais arriscadas. A Columbia queria Richard Gere, mas Parker achava Gere “heróico demais”. Queria alguém que parecesse vulnerável, à beira do colapso. Davis oferecia isso. Tinha olhos que imploravam por redenção, e um corpo que tremia sob a menor pressão. Sua interpretação era de partir o peito: tão crua que, ao final das filmagens, poucos duvidavam que ele tivesse deixado parte de si naquelas celas cenográficas. Era exatamente o que Parker precisava: um protagonista que o público acreditasse ser incapaz de escapar.

No entanto, o verdadeiro Billy Hayes era mais equilibrado. Astuto, articulado, sempre tramando. Amigo da família Sussman, ele mais tarde revelaria seu incômodo com o retrato cinematográfico: “No filme, eu sou uma vítima. Na vida real, eu me movia o tempo todo.” Ainda assim, Hayes nunca nutriu rancor contra a Turquia. Décadas depois, retornaria ao país em segredo, acompanhado por policiais à paisana, para evitar retaliações. Chorou ao visitar os locais onde esteve preso. Pediu desculpas. Disse que amava o povo turco e que jamais desejou que o filme causasse tamanha mágoa. “Não odeio vocês”, repetia. E talvez, ali, dissesse isso mais para si mesmo.
Fonte:
Filmoscópio, Facebook.

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