CERRADO MAIS UMA VEZ PEDINDO SOCORRO!
O 'BERÇO DAS ÁGUAS' DO BRASIL, ESTÁ SENDO DESTRUÍDO!
Cerrado, 'berço das águas' do Brasil, está sendo
destruído!
Aos 33 anos, o historiador e
técnico agrícola Samuel Leite Caetano declarou para a plateia do Museu do
Amanhã que nunca tinha estado num lugar tão bonito. Aos 66, Maria do Socorro
preferiu falar em pé, do alto de seu par de sandálias douradas, para lembrar
que vem de um lugar, o Cerrado, que é considerado o berço das águas:
"Se eu preservo minha fonte eu vou
preservar a água das cidades", declarou, olhando em volta.
Fátima
Barros, nascida em 72, trouxe a emoção na voz para falar sobre as ameaças que o
Cerrado está sofrendo, sobretudo por parte do agronegócio. Uma emoção que lhe
dá coragem e vontade de partir para o enfrentamento: "Não temos medo da
tempestade porque nós somos a tempestade".
Já
Maria Emilia Pacheco, que é mineira mas mora no Rio, e que já presidiu o
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) lembrou como é
distante, não só fisicamente, do carioca e do Sudeste, a região do Cerrado. Mas
não devia ser assim: "Estamos falando de uma questão nacional, a vida no
Brasil depende muito do Cerrado".
Dediquei parte da minha manhã de ontem (9) a
ouvir histórias do Cerrado no Museu do Amanhã, no evento "O Cerrado em
toda parte" organizado em parceria pelas ONGs ActionAid e Rede Cerrado.
Katia Favilla, secretária executiva da Rede, lembra que parte deste
distanciamento das questões de uma região tão importante para o Brasil foi
porque houve um tempo "em que os povos e comunidades tradicionais lutaram
para ficar invisíveis", já que isso era uma garantia de sobrevivência e de
permanência em seus territórios.
Hoje não é mais assim. A luta é pela
visibilidade, para mostrar aos povos de todas as regiões do Brasil que existe
um lugar, que ocupa um quinto do território do Brasil e se estende por 12
estados, considerado a savana mais rica em biodiversidade do mundo, que está
sendo dia a dia desmatado, espoliado, para dar lugar a pasto e plantações de
monoculturas.
"Falar sobre o Cerrado e sobre seus povos no Museu do
Amanhã é trazer a discussão para as grandes cidades, é expor a um público já
acostumado a falar de Amazônia, as riquezas de outro bioma extremamente
importante para o país", diz Karia Favilla.
A sociedade civil está fazendo a sua
parte, mostrando que não é preciso tanta destruição para alimentar as pessoas,
como bem lembrou Maria Emilia Pacheco.
"Os portugueses quando chegaram ao Brasil
encontraram o roçado dos indígenas, com alimentos que eles haviam descoberto, e
destruíram tudo. Nós aqui da cidade estamos nos esquecendo de que os alimentos
que temos hoje na mesa vem do trabalho que continua sendo feito pelas
comunidades tradicionais", disse ela.
Por comunidades tradicionais entendem-se
pessoas que vivem no mesmo lugar há muito tempo e criam com ele uma relação de
afeto, não de negócio. É esta a maior diferença, como explica Maria de Fátima:
"A relação do agronegócio com o Cerrado é
um negócio e a nossa relação é de vida, de amor, de afetividade. Não há limites
para o capital. Temos feito a resistência. Minha família está na Ilha de São
Vicente (no Tocantins) há 130 anos e ainda assim enfrentou um processo jurídico
que nos expulsou em 2010, por um fazendeiro que conseguiu retirar de lá a
comunidade. Conseguimos retornar, enfrentamos um processo para comprovar nossa
ancestralidade, o que é uma violência para os povos quilombolas. Precisei de
papel de cartório para dizer que sou quem sou. Lutamos contra tudo isso de
pé".
A violência contra os povos que lá estão há
tanto tempo, por si só, já é um absurdo. O descaso com o meio ambiente aumenta
a sensação de que não se está percebendo o tamanho da tragédia. Os números,
divulgados ontem no evento que durou o dia inteiro, apoiado pelo Museu, dão
conta de como é preciso que o poder público lance um olhar para a região. Vejam
só:
- Só entre 2016 e 2017, o Cerrado perdeu o
equivalente a mais de 1 milhão de campos de futebol, segundo dados do
próprio Ministério do Meio Ambiente. Hoje, a cobertura florestal do bioma
ocupa menos da metade de sua área original;
- O Matopiba (nome da região composta pelos
estados do Maranhã, Tocantins, Piauí e Bahia) é a última grande
remanescente de Cerrado contínuo e repleto de comunidades tradicionais e
agricultores familiares. O Plano de Desenvolvimento Agrário, no entanto,
vem promovendo a substituição de mata nativa por grandes extensões de
monoculturas.
- Hoje, 36% de todo o gado e 63% de toda a soja
plantada no país estão no Cerrado. E 30% da área virou pasto.
Dá para imaginar tanto desmatamento num terreno
onde brotam as principais fontes de água doce do país? Um terreno que contribui
com oito das 12 regiões hidrográficas, entre elas as bacias dos rios
Araguaia/Tocantins, do Rio São Francisco e do Rio Paraná e abriga três
aquíferos está sendo desmatado, segundo informações da Rede Cerrado, por
projetos que desde os anos 70 estimulam a "limpeza" da vegetação para
a produção.
Esta é a questão. As soluções são várias e não
precisam de caras tecnologias para serem implantadas, o melhor é isso. A
agroecologia, um conceito que pressupõe a prática da agricultura de maneira
cuidadosa não só com o meio ambiente como levando em conta as pessoas, a
cultura de cada povo, ensina muita coisa. Há cerca de um mês, as Fundação Boll
e Rosa Luxemburgo lançaram no Rio o Atlas do Agronegócio, que aponta a
agroecologia como uma alternativa. Ela já é utilizada em cultivos de arroz no
mundo inteiro.
"A agroecologia promove a agricultura em
pequena escala, em sintonia com os ecossistemas. Não é apenas um conjunto de
técnicas agronômicas; é um processo político, social e transformador. Oferece
ferramentas que dão às pessoas o direito de definir seus próprios sistemas de
alimentação, agricultura, pecuária, pesca e as políticas que impactam estes
sistemas como parte de um movimento internacional. A agroecologia não procura
melhorar a agricultura industrial, mas substituí-la", diz o relatório.
É de transformação, portanto, que estamos
falando. Uma transformação que dê passos para a frente, que ouça atentamente o
que cientistas do mundo todo estão falando sobre as respostas que a natureza dá
aos impactos que vem sofrendo. Isto, sim, nos colocará em posição de respeito
na comunidade internacional de maneira sustentável.