BRASILEIRO DESCONFIA DE POLÍTICOS, MAS VÊ ELEIÇÃO COMO
SAÍDA PARA CRISE
Descrédito
do eleitor brasileiro abre espaço para renovação, diz pesquisa da FGV-DAAP
Em plena
era da livre informação, domesticamos desejos e terceirizamos escolhas. E se a
consequência for o autoritarismo?
A
velocidade do avanço tecnológico e o impacto da expansão da internet para a
circulação de informações, desde o fim do século passado, prometiam sepultar as
relações de poder constituídas num formato piramidal. Até então, quem detinha o
monopólio do conhecimento tinha lugar reservado na ponta da pirâmide, de onde
mantinha e lutava pela manutenção do prestígio e da influência - os pais, os
chefes, os professores, os governantes, os líderes religiosos, etc.
Com as
novas ferramentas de interação e buscas de informações, os referenciais
familiares, religiosos e políticos pareciam fadados a um novo papel. Não
deixariam de existir ou influenciar, mas precisariam suar mais. Ninguém,
presumia-se, aceitaria como respostas “porque sim”, “porque Deus quis”, “porque
o regulamento determina” quando tinha como contraponto um acervo de informações
e debates que jogavam luz às formas mais naturalizadas de relacionamento.
O
rompimento de fronteiras e expansão das formas de conhecimento, não mais
trancafiadas no ambiente acadêmico, colocariam em xeque as próprias posições da
pirâmide. Por exemplo: como um homem, portador das chaves do perdão e da
reconciliação e que jamais casou pode dizer, em público ou na confissão, o que
era melhor para o nosso casamento? Mais: por que só homens ocupavam estes
púlpitos?
A expansão
desses contrapontos de livre acesso exigiria, assim, a sofisticação de
respostas, que já não caberiam nas caixinhas de “certo e errado” ou “porque eu
quero” ou “obedece quem tem juízo”. O simples questionamento desta ordem,
discutida em grupos reunidos pela facilidade das redes, era um bomba-relógio no
mundo das cartilhas. “Se você fizer assim, vai acontecer assado”; “se não
fizer, vai apodrecer no inferno ou na terra”. A nova pergunta agora é:
"quem disse?"
A decadência
dessas cartilhas tinha um preço. Com elas, poderíamos até não ser felizes, mas
sabíamos por quê – porque desobedecemos, porque pecamos, porque trabalhamos de
menos, porque acreditamos pouco, porque demos cabo às nossas paixões mais
condenáveis. Nas cartilhas das religiões, a possibilidade de reconciliação com
uma ideia de paz e plenitude nos garantia sempre uma ideia de acolhimento se
nos arrependêssemos de nossos desejos incompatíveis com os manuais - o que tem
seu lado ótimo quando o manual prega, por exemplo, o respeito ao próximo.
A má
notícia para quem passou a entender este manual como um instrumento de
perpetuação do próprio sofrimento, até então associado ao desajuste em um mundo
que nos pedia ordem e correção o tempo todo, e passou a contestar ideias
relacionadas às contenções e convenções meramente sociais ("o sexo é o
corte", relembrem), é que, a partir de então, nós, indivíduos com gosto,
vontade e capacidade de decisão, passamos a ser responsáveis por nós mesmos.
Mas algo
parece travar (ou atrasar) esta conversão aparentemente natural. À medida que
se expande, a rede que leva a luz às nossas questões mais escondidas e
inconfessáveis se coloca também a serviço da escuridão. Sofismas, boatos, ilações e cinismos passaram a pipocar em nossas
caixas de mensagens, depois nas timelines, depois nos grupos de WhatsApp.
O caminho
da informação era o mesmo da desinformação, e o acesso ao conhecimento passou a
ser um exercício constante de filtro, contextualização e organização do
pensamento. Isso não acontece de uma hora para outra. Nesse intervalo,
as forças atingidas pela expansão do conhecimento passaram a reagir
como sempre reagiram: na base do medo, das ameaças, da chantagem.
Não é por
outro motivo, por exemplo, que prepostos do obscurantismo, como Silas Malafaia,
sejam também fenômenos da internet.
Eles surfam
numa crise de valores que detonou as noções de certo e errado, puro e impuro,
sagrado e profano e estabeleceu a diversidade e suas possibilidades como marcas
da contemporaneidade.
Mas essa
crise inevitável alimenta outros tipos de sofrimentos, entre os quais o nosso
dever de encontrar, por nós mesmos, os caminhos para a própria salvação por
meio do autoconhecimento e dos destroços de nossas culpas e remorsos.
Ou seja:
não somos responsáveis apenas pela nossa felicidade, mas pela nossa
infelicidade também. Isso exige de nós o que a filósofa Viviane Mosé classifica
como “capacidade de autogestão” para lidar com a dor e com uma condição
inevitável da vida: morreremos. Pior: morreremos sem a menor garantia de que a
felicidade seja outra coisa se não um intervalo entre uma dor e outra.
Se
abdicamos desse papel, e tentamos adiar o confronto e a finitude com
amortecedores para encarar a angústia e a dor (medicamentos, drogas legalizadas
ou não, overdose de atividades alienantes e pouco reflexivas), é porque o
processo de autodescoberta é, em si, doloroso. Ele nos leva a perceber que nem
tudo faz sentido, nem tudo é recompensador, nem tudo tem começo, meio e fim.
Como lidar com isso? Restabelecendo uma ordem anterior e voltando pra dentro da
caixa, de onde teremos respostas pra tudo e poderemos terceirizar as nossas
próprias escolhas.
Não
estranha, portanto, que a igreja, com 53,5% das menções, seja hoje a
instituição mais confiável dos brasileiros, segundo a pesquisa
da Confederação Nacional de Transporte (CNT), em parceria com o
instituto MDA divulgada na terça-feira 21. É ela, em suas mais variadas
formas, que oferece um caminho às nossas inseguranças relacionadas ao mundo
como caos.
Ela nos
devolve o manual de conduta sem o qual nos confrontamos com nós mesmos.
Restabelece os laços que acreditávamos perdidos, entre os quais as virtudes
familiares, hoje, segundo um discurso comum, em perigo diante de tantas
possibilidades de amar e ser amado. E, finalmente, terceiriza nossas escolhas e
determina um caminho para a felicidade: se ela não foi atingida, não é porque
ela inexiste, mas porque não acreditamos nem nos vigiamos o suficiente.
A religião
no Brasil sempre teve papel fundamental na educação e na consolidação das nossas
relações sociais e comunitárias. Mas a resiliência em renovar seus manuais num
mundo plural e diversificado, e a aceitação dessa resistência na repetição
quase violenta de um discurso contra a nossa vocação natural de buscar
respostas e formas de vida mais libertárias fora da velha caixa, mostram o
quanto estamos hoje dispostos a abrir mão de uma nova ideia de liberdade por
uma velha ideia de ordem.
Pois, se
não sabemos lidar com a desordem, melhor deixar a sua administração à vontade
divina – inclusive a hora de nossa morte sem necessariamente entender o que nos
leva a ela.
Isso talvez
explique o desprezo de determinados líderes religiosos em relação qualquer
princípio de direitos humanos: quando se tem em mãos os princípios divinos,
pode-se tudo, inclusive abandonar os que não se encaixam em nossos discursos de
salvação. O que, claro, vai de encontro a uma ideia fundamental de amor,
acolhimento, compreensão e caridade espalhada pelos evangelhos, e confunde uma
ideia de religiosidade e espiritualidade com manual para sobreviver na selva e
minimizar nossas angústias, nossos maiores termômetro sobre o que está ou não
bem em nossa vida.
Em pesquisa
também recente, jovens entre 16 e 24 anos ouvidos pelo Datafolha diziam
considerar mais importante as instituições familiares (99%) e religiosas (78%)
do que sexo (67%) ou casamento (66%).
O recado
parece claro. Num mundo caótico e apontado como perigoso, não estranha que
as Forças Armadas, também relacionadas a uma ideia de ordem ou
restabelecimento da ordem, seja a segunda instituição mais confiável do Brasil,
com 15,5% das citações na pesquisa da CNT/MDA – o triplo da confiança da
polícia, a parte visível, e mais passível ao escrutínio da opinião pública, da
política de segurança. Nas duas instituições mais confiáveis do País, as
relações de desejo e escolhas de seus integrantes são sempre condicionadas a
uma voz de comando hierarquizada.
Na outra
ponta, as instituições menos confiáveis são justamente as que têm por natureza
o contraponto e o embate de ideias como princípio básico de operação: partidos
políticos (0,1%), Congresso Nacional (0,8%), governo (1,1%) e imprensa (4,8%).
Ou seja: quanto mais plural, fragmentada e exposta a contradições é a
instituição, menos confiança ela inspira.
Não deverá
causar espanto, portanto, se amanhã a nossa indisposição em lidar com nosso
mal-estar autorizar a terceirização da gestão de nossos conflitos à brutalidade
de quem prometa substituir nossas negociações, contrapontos e dúvidas por
certezas absolutas que reordenem, pelo medo, partidos políticos, Congresso
Nacional, governo e imprensa. Essas certezas absolutas, quando avançam em áreas
onde o contraponto é fundamental (a política, o relacionamento e a escola, por
exemplo), são sempre motivos de tensão. Elas reduzem a condição humana, seus
desejos e contradições, a uma multidão de falas decoradas, amedrontadas e
obedientes.
CB-DF
Postar um comentário