OS DITADORES E O MEDO QUE AJUDA A GOVERNAR.

QUANDO O MEDO AJUDA A GOVERNAR.
De ADRIANA CARRANCA.

(Publicada no ESTADÃO e em O GLOBO)

Uma edição de 1927 do semanário “Der Angriff”, publicado em Berlim por Joseph Goebbels, que mais tarde seria ministro da Propaganda do Reich, traz o então chanceler federal alemão Gustav Stresemann amarrado, com uma venda nos olhos e cercado por baionetas, enquanto a mão de um judeu gigante esvazia seus bolsos. Por quase 20 anos até 1945, jornais e revistas nazistas retrataram os judeus com figuras monstruosas e perigosas, exploradores que queriam dominar a Alemanha, criminosos, abusadores e até seguidores de rituais macabros, como beber o sangue de cristãos.
A máquina de propaganda nazista serviu largamente para a desumanização e marginalização da minoria judaica aos olhos de alemães comuns. A primeira capa do jornal antissemita “Der Stürmer” sob os nazistas trazia a charge de um homem empunhando uma pistola e a legenda: “Um crime infame mancha a terra que recebeu o judeu assassino como convidado”, numa alusão ao seu status de imigrante.
Quando Hitler adotou as primeiras medidas para banir judeus, ele já dominava a opinião pública. Sinagogas e lojas kosher começaram a ser saqueadas e destruídas; os judeus, colocados como ameaça à ordem, à segurança e à existência da Alemanha. Embora ninguém previsse o Holocausto, o argumento da autodefesa serviu aos nazistas.
O medo é um velho aliado do poder. Seu uso político pode ser rastreado até a Grécia antiga. Joseph Stalin e Mao Tsé-tung governaram sob a sombra do temor — do próprio regime e da burguesia. Tornou-se estratégia de campanha, explorada pelos populistas de esquerda da América Latina à Europa; e pelos partidos de direita para obstruir sua marcha.
Vivemos uma nova era do medo desde o 11 de Setembro. Sob seu efeito, o argumento da autodefesa obstrui o pensamento crítico da imprensa que apoiou a guerra no Iraque diante de relatório (falso) sobre a posse de armas de destruição em massa por Saddam Hussein. Em fevereiro de 2003, a “Economist” defendeu a invasão em editorial, e foi levada a se retratar mais tarde.
O debate voltou à revista inglesa e à imprensa americana esta semana. Na reportagem de capa, “Jogando com o medo”, a “Economist” mostra como a direita populista nos EUA e na Europa avança sob a sombra do medo, renovado após ataques como os de Paris e San Bernardino.
No centro do debate está Donald Trump. Em seu livro, “The Art of the Deal”, publicado em 1987, ele escreve: “Algo que aprendi sobre a imprensa é que está sempre faminta por uma boa história e quanto mais sensacionalista melhor… Se você for um pouco diferente ou um pouco ultrajante, ou fizer coisas ousadas ou controversas, a imprensa vai escrever sobre você”.
Ele faz exatamente isso ao propor o fechamento “total e completo” das fronteiras a muçulmanos estrangeiros e das mesquitas, e o registro de muçulmanos americanos. Ou ao declarar que a América se tornou “a lixeira do mundo”, o lixo sendo os imigrantes. As declarações ganham as manchetes e abastecem os comediantes.
Seria engraçado, não fosse trágico. “O problema com este palhaço em particular é que suas palavras não têm graça. A linguagem que ele usa sobre imigrantes é desumanizante e vil”, escreveu Lawrence Downes em editorial do “New York Times”.
Seu discurso é catalisado por medo, ressentimento e ódio. Pesquisa do NYT/CBS, divulgada quinta-feira, mostrou que os americanos estão mais amedrontados do que nunca desde o 11 de Setembro — 41% acreditam na possibilidade de um novo ataque iminente. Trump lidera a corrida para candidato republicado à Presidência. É difícil prever se disputará o cargo ou se tem alguma chance. Mas o efeito mais nocivo de sua campanha, que não pode ser ignorado, é a toxidade de suas ideias.
Em Boston, dois jovens, dizendo-se “inspirados por Trump”, urinaram num homem de rua de origem latina e o atacaram — no início da campanha, o magnata chamou mexicanos de criminosos e estupradores. Nas últimas semanas, o Conselho de Relações Americanas-Islâmicas em Washington teve de ser esvaziado após ameaça de ataque químico; uma cabeça de porco foi deixada na porta de um centro islâmico em Filadélfia, outro foi destruído na Flórida. No mesmo estado, o dono de uma loja de armas distribuía placas com a frase: “Área livre de muçulmanos.”
Em entrevista à NBC, a pré-candidata democrata Hillary Clinton disse que Trump “não é mais motivo para rir”. De fato, deixou de ser engraçado.


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