Claudia Wallin: Como a mídia
é regulada na Suécia.
O Ombudsman sueco da
Imprensa levanta uma sobrancelha, como se acabasse de ouvir um impropério ou um
desvairado insulto pessoal. A pergunta é se o sistema de regulação da mídia na
Suécia pode ser interpretado como algum tipo de censura ou cerceamento da
liberdade de imprensa. ”Absolutamente não”, diz um quase raivoso Ola
Sigvardsson. ”Trata-se,aqui, de proteger a ética”.
O entendimento sueco é que o
direito de expressar uma opinião traz, em doses iguais, o dever da
responsabilidadeO entendimento sueco é que o direito de expressar uma opinião
traz, em doses iguais, o dever da responsabilidade Em 1766, a Suécia aprovou a
primeira lei de liberdade de imprensa do mundo. Um século e meio depois, os
suecos chegaram à conclusão de que era inadiável criar um modelo que, se de um
lado preservava a essencial liberdade de expressão, de outro continha os
perigosos excessos da mídia. Em 1916, o país criou o mais antigo conselho
supervisor de imprensa da história – um modelo pioneiro, que viria a inspirar a
criação de organismos de auto-regulamentação da mídia em diversos países.
Tempos depois, os suecos
deram mais um passo à frente: incorporaram representantes da sociedade e do
Judiciário ao seu Conselho de Imprensa. Criaram também um Comitê de
Radiodifusão para supervisionar o rádio e na TV, e também puseram lá cidadãos
comuns – como professores, médicos, representantes de sindicatos. E a
presidência dos dois organismos é sempre excercida por juízes da Suprema Corte,
que se alternam, em regime de revezamento, à frente dos órgãos de supervisão.
O entendimento sueco é que o
direito de expressar uma opinião traz, em doses iguais, o dever da
responsabilidade. ”A liberdade de expressão, quando exercida de forma abusiva,
pode ofender, incitar à discriminação e à violência, ou ter consequências
negativas para um indivíduo ou uma sociedade como um todo”, diz a literatura
oficial sueca sobre o tema.
O modelo sueco é, por
definição, um sistema de auto-regulação voluntária da mídia – mas que se equilibra
sobre o alicerce de um sólido conjunto de normas de conduta, e leva em conta a
voz do público. Não há uma legislação específica para regular a imprensa: o que
rege o sistema é um robusto código de ética.
Ola Sigvardsson,
ex-jornalista que desde 2011 ocupa o cargo de Ombudsman da
Imprensa na Suécia.
”A ética é sempre muito mais
rigorosa do que as leis”, pondera Ola Sigvardsson, ex-jornalista que desde 2011
ocupa o cargo de Ombudsman da Imprensa na Suécia.
”Um jornal poderia, por
exemplo, publicar os nomes de pessoas que cometeram suicídio, ou de indivíduos
suspeitos de ter praticado um crime. Isso não seria uma violação à lei, mas
seria antiético. A ética também manda que a imprensa seja particularmente cuidadosa
com as vítimas de crimes, por elas já terem sofrido o suficiente”, observa
Sigvardsson.
Os guardiões da ética na
imprensa sueca são o Ombudsman da Imprensa e o Conselho de Imprensa (Pressens
Opinionsnämnd). O Ombudsman, também uma invenção sueca (de ”ombud”,
representante, e ”man”, povo”), é a face pública do sistema. Ele atua como o
primeiro filtro das queixas relacionadas à mídia, e tem poderes para mediar
correções e direitos de resposta nos jornais. Casos mais complexos são
examinados pelo Conselho em seu conjunto.
O envolvimento no sistema do
Conselho de Imprensa é voluntário – mas praticamente todos os jornais e sites
noticiosos do país são sócios desse clube: aos olhos do seu exigente público,
submeter-se voluntariamente a um real escrutínio representa uma espécie de selo
de garantia de responsabilidade.
”Quando o jornal Expressen
foi criticado certa vez, o editor estampou a seguinte manchete: ’O Expressen
foi criticado pelo Conselho de Imprensa. Leiam sobre isso’. Porque a posição do
editor é a de que ser reconhecido como um jornal responsável é o caminho do
futuro, e uma maneira de se diferenciar do ”quase jornalismo” que em muitos
casos se pratica na internet.
“No passado, publicar uma
crítica do Conselho era algo vexaminoso. Hoje, eu diria que essa cultura está
sendo transformada: publicar uma crítica mostrando que seu jornal errou mostra
ao seu público que você está empenhado em ser correto”, diz o Ombudsman da
Imprensa, que é nomeado por um comitê especial composto pelo Ombudsman do Parlamento,
o presidente da Associação Nacional de Magistrados da Suécia e o presidente do
Clube Nacional de Imprensa.
O Conselho de Imprensa sueco
é formado por 32 integrantes: além dos quatro juízes da Suprema Corte que se
revezam na presidência, a composição do órgão é equilibrada entre 16
representantes das organizações de mídia e 12 membros do público em geral. Os
representantes públicos – atualmente composto, entre outros, por médicos e
professores – são nomeados pelo Ombudsman do Parlamento, e pelo presidente da
Associação Nacional de Magistrados da Suécia.
”Não há qualquer
interferência de políticos, do estado ou do governo. É um comitê independente,
que realiza uma supervisão independente”, diz Fredrik Wersäll, o juiz da
Suprema Corte que preside atualmente o Conselho.
”A Suécia tem uma forte
tradição de liberdade de expressão, que é um elemento básico de uma sociedade
liberal. Mas por outro lado, é preciso defender os valores éticos”, destaca
Wersäll.
Com orçamento anual de 45
milhões de coroas suecas (cerca de 15,3 milhões de reais), o Conselho de
Imprensa da Suécia é financiado majoritariamente pelas quatro principais
organizações jornalísticas do país: a Associação de Editores de Jornais (75%),
a Associação dos Editores de Revistas (5%), a União de Jornalistas (menos de
1%) e o Clube Nacional de Imprensa (menos de 1%) – organismos que são também
responsáveis pela formulação do Código de Ética que rege o sistema.
Os cerca de 20% restantes do
financiamento do Conselho vêm de uma peculiaridade do sistema sueco: as multas
aplicadas a empresas jornalísticas que violam as normas da ética. O valor das
multas varia de 13 mil coroas suecas (cerca de 4,4 mil reais), para jornais de
menor porte, a 22 mil coroas (aproximadamente 7,4 mil reais) para jornais com
tiragem superior a dez mil exemplares.
É um sistema que ainda se
apóia consideravelmente na eficácia da ameaça da humilhação pública: jornais
que atropelam o código de ética costumam publicar os veredictos do Conselho de
Imprensa em notas da proporção de uma página quase inteira – mesmo não sendo
obrigados a isso: ”Recomendamos que as críticas sejam publicadas com destaque,
mas não há obrigatoriedade no cumprimento da norma”, diz Synnöve Magnusson,
secretária-geral do Conselho.
“Por que então quase sempre
as críticas ocupam quase toda uma página?”, pergunto.
”Penso que é porque os
jornais têm grande respeito pelo sistema”, responde Synnöve. ”E o sistema
funciona, porque os leitores suecos odeiam ver esse tipo de crítica no jornal
que compram”.
No site oficial do Conselho
de Imprensa, é possível acessar um extenso banco de dados com as reprimendas e
punições aplicadas pelo órgão. Um dos casos mais recentes é o de um sueco que
se prepara para cumprir pena em uma penitenciária, e que encaminhou a sua queixa
ao Conselho: o jornal Aftonbladet havia incluído seu nome em uma lista
decondenados pela Justiça procurados pela Interpol, em reportagem intitulada
”Caçados em todo o mundo”.
Só que o homem já havia se
apresentado à Justiça, que o condenou a quatro anos de prisão por ter
ludibriado os serviços sociais ao fingir estar preso a uma cadeira de rodas
para receber benefícios do Estado. O Conselho demandou a correção.
A cada ano, o Conselho
recebe em torno de 200 queixas formais, em sua maioria relacionadas à cobertura
jornalística sobre suspeitos de crimes e a casos de invasão de privacidade.
Este ano, das 136 reclamações recebidas, 72 resultaram em críticas ao órgão
jornalístico em questão.
”O sistema é eficiente, e
não penso que o código de ética deve ser transformado em lei. Porque uma
legislação teria o potencial de reduzir a liberdade de expressão”, opina o
Ombudsman da Imprensa.
A Suécia também não tem uma
legislação específica para regular a alta concentração da mídia no país: dois
grupos, o sueco Bonniers e o norueguês Schibsted, controlam os jornais de maior
circulação nacional e têm diferentes interesses no mercado de TV; a tradicional
Bonniers controla ainda a maior editora do país.
”Somos um país pequeno, de
pouco mais de 9 milhões de habitantes, e o mercado tende a ser mais
concentrado. Temos por outro lado uma forte tradiçãode liberdade de opinião, e
fortes valores éticos na mídia. Também há um grande espectro de empresas
independentes de distribuição e produção de conteúdo.Mas há um consenso geral
de que, a longo prazo, precisaremos ter um novo panorama de mídia no país”, diz
Kristoffer Talltorp, o porta-voz do Ministério da Cultura.
Casos de fusão de empresas
de mídia, porém, passam obrigatoriamente pelo crivo do Konkurrensverket, a
autoridade sueca que regula a competição no país.
”Bloqueamos uma fusão de
empresas de mídia recentemente, pois do contrário uma companhia de TV a cabo
teria se tornado dominante demais”, conta Maria Ulvensjö, especialista em casos
de merger do Konkurrensverket. ”Mas não é proibido na Suécia que uma empresa de
mídia cresça e adquira predominância.”
Também não há nenhuma
proibição formal, na Suécia, de que políticos sejam donos de jornais ou
concessões de rádio e TV.
”Mas isso simplesmente não
acontece aqui. Seria inaceitável”, afirma o porta-voz do Ministério.
Para o rádio e a TV sueca, o
sistema de auto-regulação segue os moldes do modelo adotado na imprensa.
Oguardião do sistema é a Comissão de Radiodifusão(Myndigheten för Radio och
TV), subordinada ao Ministério da Cultura. São duas as funções do órgão:
regulamentar a outorga de concessões, e supervisionar se as regras
estabelecidas na Lei de Rádio e Televisão são cumpridas pelas emissoras.
A renovação de concessões de
rádio e TV não é automática.
”As licenças são concedidas
por um período máximo de seis anos”, diz Kerstin Morast, diretora do
departamento responsável pela outorga de concessão de licenças. ”Todas as
licenças de rádio e TV na Suécia expiram simultaneamente, e portanto a cada
seis anos iniciamos um amplo processo de análise da renovação das licenças”.
Algumas normas da Lei sueca
de Rádio e TV, atualizada em 2010, são:
- O direito de realizar
transmissões deve ser exercido, mais especificamente no caso das emissoras
públicas, com imparcialidade e objetividade
- Empresas jornalísticas
devem garantir que os serviços de jornalismo reflitam os conceitos fundamentais
de uma sociedade democrática, o princípio de que todas as pessoas têm igual
valor, e a liberdade e dignidade do indivíduo
- Programas para crianças
menores de 12 anos de idade não devem ser interrompidos por comerciais
- Anúncios comerciais na TV
não devem exceder o total de 12 minutos por hora
A lei sueca também proíbe a
veiculação de comerciais destinados a crianças menores de 12 anos de idade.
Igualmente, a lei não
permite que estrelas de programas infantis façam qualquer tipo de propaganda na
TV.
”E antes das 9 da noite, as
emissoras devem também evitar exibir filmes violentos ou que possam amedrontar
as crianças. É recomendável ainda que a violência na TV sempre seja mantida em
níveis aceitáveis”, diz o jurista Nils Sigfrid, jurista da Comissão de
Radiodifusão.
A supervisão do cumprimento das
normas é feita em caráter constante, na Comissão, pelo chamado Comitê
Supervisor da Radiodifusão (Granskningsnämden för Radio och TV).
O órgão é composto por 11
integrantes, incluindo três juízes da Suprema Corte. Os demais oito membros são
representantes públicos, nomeados pelo governo.
”Atualmente, os
representantes do público são umprofessor de Mídia e Comunicação, três
jornalistas, sendo que um deles é aposentado, um escritor e o diretor de uma
companhia de ópera”, detalha Helena Söderman, chefe do departamento de
supervisão da Comissão de Radiodifusão.
Não se trata, repete
Söderman, de um trabalho de censor: ”Absolutamente nada a ver com censura”, diz
ela. ”Temos uma legislação com normas de conduta, e regras especiais que os
detentores de concessões devem seguir.”
Dos cerca de 1 300 casos
julgados anualmente pelo Comitê, segundo Söderman, a maioria é relacionada à
questão da imparcialidade e da exatidão das informações veiculadas.
A punição para o
descumprimento das normas é a leitura das críticas do Comitê antes da
transmissão do programa em questão – ou multa: casos de emissoras que violam
por exemplo as regras sobre anúncios comerciais, ou sobre a proibição de exibir
produtos em programas não comerciais, são levados pelo Comitê à Justiça. O valor
da multa, nesses casos, pode chegar a5 milhões de coroas suecas (cerca de 1,7
milhão de reais).
Deve haver sensatez no
modelo de regulação da mídia dos suecos e seus vizinhos escandinavos, que
adotam sistemas semelhantes: Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca aparecem
consistentemente no alto dos rankings dos países com o maior índice de
liberdade de imprensa do mundo.
*Claudia Wallin é jornalista brasileira
radicada na Suécia e autora do livro "Um país sem excelências e
mordomias"