Arqueologia de uma
cidade
Por Gustavo Lins Ribeiro
Há 20 anos apenas que em Brasília ocorreu o rito de passagem
da sua inauguração. Para muitos pode dar a impressão que se está numa cidade
sem história. Pura ilusão, 20 anos são história.
Não é a duração ou a distância no tempo que define a
importância de um período. Certamente em Brasília as pessoas acreditam-se um
pouco fora da história por não sentirem aquilo que denominam tradição.
Brasília, dizem, é terra de ninguém. De fato, ao chegar aqui, hoje ou 10 anos atrás, os indivíduos deixam em seus locais de origem toda uma extensa rede de relações sociais – incluindo, claro, as de parentesco – que definia suas relações com o mundo. Ser criado, socializado numa cidade, ou nela viver durante longo tempo, implica numa multiplicidade de detalhes que vão desde o reconhecimento de sinais urbanos que trazem à memória lembranças positivas ou negativas, até encontrar-se por acaso com o velho merceeiro da esquina, que há anos se mudou por causa da concorrência de um supermercado. A ausência de tal rede social – por um lado fonte de controle e repressão, por outra fonte de segurança e satisfação por se poder realizar a leitura “ordenada” do espaço em que se vive – definiria a ausência de tradição, e, por conseguinte, a ausência de história em Brasília, já que em geral no senso comum é freqüente a identidade entre percepção do tempo individual e história. A intenção deste texto é mostrar que a história, ao ser feita por forças sociais concretas, define o presente. É também tentar jogar luz numa área bastante esquecida de nossa história contemporânea, contribuindo para que se possa perceber que equacionar o passado é desvendar o presente. A história de Brasília, fora da perspectiva oficial, é tão desconhecida que ao nos dedicarmos ao período anterior a sua inauguração sentimo-nos realizando verdadeira arqueologia. Assim, parece-nos interessante que mergulhemos, ainda que rapidamente, na pré-história da cidade. Remarquemos apenas que o mergulho deve ser dado justamente nas águas mais profundas e que propositadamente permanecem as mais escuras: a experiência dos trabalhadores. Concretiza-se uma idéia Ano de 1956. O país vivia sob o peso de momentos cruciais como o suicídio de Getulio Vargas, em agosto de 54, expressão do embate de forças políticas e econômicas que mais uma vez se defrontariam durante os acontecimentos de novembro de 55, quando o general Lott, ao impedir um golpe de Estado arquitetado pelos chamados “entreguistas” (grosso modo uma coalizão de udenistas, militares e interesses estrangeiros), assegurava a posse dos recém-eleitos Juscelino Kubitschek e João Goulart. Estava em pleno vigor a polêmica no nacional-desenvolvimentismo. De um lado, os chamados nacionalistas abrigando grupos com matizes diversos. Havia desde tendências para soluções econômicas visando fortalecer a burguesia nacional face à crescente hegemonia do capital estrangeiro, até propostas que apontavam para mudanças profundas, como reforma agrária e luta contra o imperialismo. Do outro lado, os grupos comprometidos com a penetração do capital estrangeiro, obedecendo a uma tradição de oposição udenista francamente golpista como se evidenciou, por exemplo, nos já mencionados Agosto de 54 e Novembro de 55, e que iria encontrar seu ponto máximo em Abril de 64. Ao nível internacional, a Guerra Fria impunha-se congelando as cabeças das pessoas e as relações de força das grandes potências. Neste universo dividido em nacionalistas e entreguistas, legalistas e golpistas, toma dimensão mais concreta o antigo projeto de interiorização da capital do país. Em cima de um Programa de Metas destinado a promover mudanças importantes na estrutura econômica, acrescenta-se a Meta Síntese: Brasília. No plano ideológico, vincula-se a mudança da capital a um projeto mesmo de nacionalidade, uma vez que a idéia é parte integrante de alguns momentos importantes, na ótica da mitologia da nossa história: a Inconfidência Mineira, a Independência política através da figura de José Bonifácio, nos Constituintes de 1891, na Marcha Para o Oeste de Getúlio, etc. Além do mais, casava-se com a necessidade de interiorizar e integrar economicamente o país. Neste sentido, os Bandeirantes, segundo o discurso da história dominante, converteram-se em verdadeira matriz para a reedição de um esforço desbravador e aventuresco, onde não havia espaço para “horários burocráticos”. Nada melhor do que as Bandeiras e os seus mitos para construir uma contrafação do pioneirismo oficial: os brasileiros dos anos 50 retomavam as trilhas do século XVII para levar ao interior do país a civilização, o cristianismo, a modernidade... No entanto, a construção de uma obra das proporções de uma capital federal, no interior afastado dos grandes centros, era um trabalho que demandava um elenco de decisões e iniciativas. Eram necessárias transformações que comportassem as levas de milhares de operários que acorriam para a maior frente de trabalho da época. No puro cerrado goiano, passaria a existir uma obra gigantesca com prazo marcado para a inauguração: 3 anos e 10 meses. “Que capital da esperança que nada! Brasília é a capital da inlusão” (de um mestre de obras). Já é quase lugar comum dizer-se que os que construíram Brasília foram impedidos de habitá-la. A história da construção permite-nos encontrar os pontos de ruptura e demonstrar a concretização desta contradição. Desde o inicio um dos problemas mais graves foi a habitação. A solução encontrada para propiciar as condições concretas de reprodução da vida de uma população basicamente composta de operários (mais de 60.000 pessoas no ano de 1959), foi estabelecer núcleos habitacionais provisórios. Assim, vários acampamentos foram instalados. Surge a Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, o maior aglomerado de então, tendo como função básica prover de serviços o restante da população: lojas, feiras, bares, restaurantes, material de construção, enfim, o comércio em geral. Como forma de “incentivar” os que chegavam, além da isenção de impostos, recebiam lotes mediante o compromisso de serem devolvidos na data da inauguração do Plano Piloto. Todas as construções, devido à provisoriedade do núcleo, eram obrigatoriamente em madeira. A partir de 31.12.58 estavam proibidas novas construções que, no entanto, prosseguiram à revelia do órgão governamental responsável, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital – NOVACAP. A Cidade Livre, crescendo desordenadamente, transformou-se num “formigueiro humano”, composto por milhares de barracos amontoados sem a menor infra-estrutura urbana. Destaquemos – para dar uma idéia da dramaticidade do quadro – os incêndios freqüentes que exigiam fossem derrubadas alas inteiras de barracos para se impedir que o alastramento do fogo consumisse grande parte da cidade. Acampamentos como Velhacap, Candangolândia e Vila Planalto foram construídos, agora não em decorrência da “iniciativa privada” como era o caso da Cidade Livre, mas diretamente pela NOVACAP. Na região da Velhacap, próxima a administração da NOVACAP, hospital, policia, restaurante da previdência social, escola, etc. Já a Vila Planalto, que tomou emprestado esse nome de uma companhia americana então responsável pelas estruturas metálicas dos ministérios e pela barragem do Paranoá, era um conjunto de acampamentos de várias empresas de construção, aí localizados pela sua proximidade com a Praça dos Três Poderes. Empresas como Ecisa, Rabelo, Pacheco Fernandes Dantas, Nacional, Pederneiras, lá abrigavam seus operários. Estes eram os principais núcleos preparados para dar conta da habitação de quem aqui chegava. Evidentemente a carência de moradias levou à pratica de invasões como a Vila Amauri, encostada à Vila Planalto, e que foi propositadamente realizada, em princípios de 1958, em terreno que seria futuramente o Lago do Paranoá. Um ano depois, a população desta invasão tipicamente proletária, chegava a cerca de 7.000 pessoas, vivendo uma grande parte em casebres cobertos apenas com sacos de cimento. Fato, aliás, bastante comum, como atestam invasões chamadas de Sacolândia e Lonolândia, devido a precariedade dos materiais utilizados na construção das casas operárias. A imensa maioria dos trabalhadores aqui chegava na busca de melhores condições salariais ou com um projeto de ascensão social – ganhar dinheiro e tornar-se um pequeno comerciante para “sair do pesado”, por exemplo. Assim grande parte deste operariado era composta por solteiros ou por homens que haviam deixado suas famílias nos locais de origem. De fato, a experiência individual do trabalhador poderia ser bastante diferenciada segundo a sua situação familiar.
O operário que aqui estivesse só, por um lado se desvencilhava de problemas
como prover alimentação e moradia para sua família no território em construção,
mas, por outro lado se submetia, em geral, ao esquema de alojamentos coletivos
para solteiros, o que lhes deixava inteiramente à mercê das construtoras para
uma maior exploração de sua força de trabalho. Além disso, os alojamentos para
solteiros primavam pela insegurança (roubos, agressões), sujeira, má qualidade
da comida na cantina e a vivência de relações sociais obedecendo a uma
disciplina e dinâmica que obviamente não se comparam ao homem inserido no seu
grupo doméstico. Nestes acampamentos havia também alojamentos para casados.
Porém, conseguir uma destas casas de acampamento, ou um barraco, uma lona, ou
restos de materiais de construção era tarefa difícil e improvável. Para vários,
conseguir uma moradia mais razoável só foi possível manipulando relações pessoais,
passando por operário exemplar, ou manipulando o pacto populista que em
Brasília se exprimia com todo vigor. Através de contatos com políticos,
administradores, engenheiros, abria-se um caminho estratégico para obtenção de
residências. Mas, está claro que este caminho não poderia ser percorrido por
todos. A alternativa que restava era iniciar uma invasão, ou incorporar-se a
uma já existente.
A grande presença de operários sem família, expressou-se na disparidade entre o número de homens e mulheres solteiros – 17 mulheres para cada 100 homens – gerando vários problemas. As poucas mulheres que aqui viviam precisavam praticamente ser escoltadas nas ruas por seus maridos e filhos, porque corriam o risco de serem atacadas. A ausência de maiores oportunidades de lazer limitava os operários basicamente à cachaça e ao baralho que, lógico, tornaram-se fontes de conflitos. Não demorou a se instalar na Cidade Livre, uma enorme zona de prostituição, sempre lotada, e que foi mais tarde transferida para a fronteira do Distrito Federal com Goiás, na estrada Brasília/Belo Horizonte. Por outro lado, o território da construção continuava formalmente sob a jurisdição de Goiás que não tinha condições de dar conta, em todos os níveis, da manutenção da lei e da ordem. Há indicações de que esta situação foi assim conservada deliberadamente, quando se nota, por exemplo, a ausência dos órgãos do Estado que deveriam regular o conflito entre o capital e o trabalho. Nada deveria impedir o célebre ritmo de Brasília, cujo preço foi uma super-exploração da força de trabalho.
A possibilidade de fiscalização do
trabalho e da aplicação das leis trabalhistas, na época da construção,
permeava-se da ideologia do pioneirismo que orientava as pessoas a se
distanciarem de “problemas burocráticos ou políticos”. Assim, estavam as
construtoras praticamente liberadas para manipular o operariado ao seu
bel-prazer.
Sem lazer, sem mulheres e sem lei; com cachaça e muito cansaço, logo surgia a questão do policiamento. Gozando da situação ambígua de dentro em breve tornar-se a Capital Federal, mas, por enquanto, estar submetida básica e concretamente à tutela das cidades goianas mais próximas (Planaltina e Luziânia), Brasília teve como sua primeira polícia propriamente dita, uma espécie de departamento de segurança da NOVACAP, com funções policiais. Obviamente não foi suficiente para atender a uma população que crescia vertiginosamente.
A solução foi drástica e de triste memória. Instalou-se a
célebre Guarda Especial de Brasília, mais conhecida como GEB. Os métodos de
recrutamento desta polícia eram tão esdrúxulos quanto a sua atuação. Peões eram
escolhidos por serem fortes e bem dispostos, e por desejarem sair do trabalho
de construção. Eram então sumariamente incorporados para fazer a repressão tanto
na Cidade Livre quanto nos outros acampamentos. O quadro que se formou é assim
descrito por moradores da época:
- Na zona, quando era de sábado pra domingo, o dia que não morria nada, morria quatro, cinco. O policiamento daqui tinha nome de GEB. Pegava, por exemplo, você que num sabia nada e coisa e tal, um sujeito forte, isso e aquilo outro, pegava você e engajava você na GEB. Ali, por exemplo, você numa tinha instrução, num tinha nada. Em vez de você botar respeito você era o pior. A policia chegava, o sujeito tava brigando, o sujeito chega e metia o cacete, a policia atirava, matava. Sem nem mais nem menos. - Policia mais covarde que teve, que existe no mundo, foi essa que começou aqui. Judiaram demais das pessoas. Aqui não tinha lei não. Só tinha era covardia terrível.
Definitivamente marcado na memória popular está um massacre de operários
promovido pela GEB em fevereiro de 1959, na cantina do acampamento da
construtora Pacheco Fernandes Dantas, na Vila Planalto, devido a um conflito
causado pela má qualidade da comida. São as mais variadas as versões
sobre o fato, mas não se duvida do assassinato a sangue-frio de vários
operários (inclusive foram metralhados os alojamentos onde vários homens
estavam dormindo), cujos cadáveres teriam sido transportados em caminhões
basculantes, para serem enterrados em vala de localização desconhecida. A
responsabilidade por este crime não foi atribuída nem cobrada a ninguém em
especial. Tudo por conta da grande repressão policialesca de então e do
espírito de pioneirismo que não permitia paralisação de obras para averiguações
tão “burocráticas”.
De qualquer modo, este massacre é a expressão agudizada de
componentes como a má qualidade da alimentação nos acampamentos, disciplina e
controle do operariado ao arbítrio das empresas, repressão policial violenta,
dilapidação da força de trabalho, obediência ao prazo da construção sob
qualquer argumento.
Transcrito do livro “Brasília, Ano 20 – Depoimento de 35 Fotógrafos de
Brasília”
http://brasiliapoetica.blog.br
Poesia-homenagem de um maranhense a
Brasília!
Do oitavo andar
desta Capital Entre alguns metros quadrados de pedra e poeira; de sal e suor semi-árido escorrendo pelos centímetros cúbicos da parede; atado a lençóis e lembranças a cheiro de amor inacabado e afã de corpo nu delirando em meu silêncio, um grito amordaçado desperta o meu sono: um temor súbito (vindo não sei de onde) atravessa o coração cimentado deste edifício que me guarda com a velocidade de uma bala traiçoeira disparada contra alguém que desperta dentro da noite e penetra na escuridão das ruas de Santiago do Chile (ou quem sabe nos porões de uma fábrica qualquer no ABC paulista dentro do outono na espinha dorsal do Brasil) 2 Do oitavo andar desta Capital entre alguns metros quadrados de mormaço e luz, debruçado aos olhos medonhos desta cidade esquisita observo: sob os céus do meu país a lua amola suas facas vermelhas penteando a cabeleira dos tetos: espalhados, desdobrados, somados e divididos, sim, (conforme os trajes de quem os habita) como o desamparo e o latifúndio deixados de herança no curso da História - que remove os homens mas não move os Andes – e hoje fervendo nas veias mais vivas e abertas presos (como uma língua afiada) às gargantas mais fundas da América Latina entre o Atlântico e o Pacífico no coração dos hemisférios norte-sul! sob os céus do meu país os relógios não marcam hora nenhuma: apenas batem (em agonia) sem contar os passos que o tempo desata (em torno dele e de mim) Não marcam hora nenhuma quando se espera o sol perfumar as gavetas do futuro no principio de uma noite que nunca mais amanhece! 3 Lá fora à margem esquerda da rua dentro de um prato sobre a mesa na cozinha, numa fotossíntese de fome e fel o tempo copula: o tempo negado rasgado enterrado; o tempo perdido ferido detido medido, agora, na vastidão flexível do meu corpo numa dimensão enorme escura fria impossível de alcançar. E me pergunto coisas relembro nomes mortes vertigens enquanto arrasto-me ao lado das horas: asfixiado por dentro esquecendo-me por fora convulsivo agonizando (quase morto!) Mas silenciosamente atento a tudo o tempo copula. 4 Copula e em sua camisa de fogo ele às vezes explode: em sua camisa de força de Vênus de morte - sobretudo de morte: como nos campos do Oriente Médio de El Salvador de Afeganistão... Como na Plaza de Mayo em Buenos Aires (onde não se sabe até quando brotarão fios de fumaça do último incêndio militar). Ou ainda nos arredores de uma favela qualquer em São Luís do Maranhão nas cabeceiras azuis do Nordeste Brasileiro: ali encontraremos (se quisermos) quem ainda brinque de viver (sem comer) entre a lama e a fome até morrer. E também em Brasília: mesmo distante da zona muçulmana de Beirute onde não há tanques (nas ruas) nem facções se danificando a céu aberto quando não explode, ele expõe seus estilhaços que, como agora, buscam me consumir numa funda cratera numa vasta e invisível cratera onde mortos trabalham! 5 Do oitavo andar desta Capital entre alguns metros quadrados de vida e quilômetros de morte à minha frente sob os céus do meu país onde os relógios não marcam hora nenhuma e o tempo explode suas cápsulas de ar carbonizado esta porção de sangue coagulada em meu prato; esta fagulha esfacelada de carne humana Amargando a minha boca-animal ainda não servem para me dizer que a guerra do Vietnã já acabou faz tempo. Domingos Pereira Netto, poeta maranhense, natural de Pindaré-Mirim. Poema transcrito da antologia “Poemas para Brasília”, de Joanyr de Oliveira. |
- Início
- Samambaia
- _Nossa cidade
- _Turma do CED 123
- Brasília
- Pensamentos
- Papo de eleitor
- Especiais
- _Vamos indo, vamos rindo
- _A cidade, o crime, a polícia, a verdade!
- _Opinião/Política DF: A inesquecível turma da "Caixa de Pandora".
- _Vale do Rio Doce ou Vale da Morte e da destruição
- _Bons vídeos
- Parceiros